INTERCEPTAÇÃO DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS

Lean Antônio F. de Araújo*

1 - INTRODUÇÃO

1.1. A Constituição Federal, em seu art. 5º , afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Como adverte Alexandre de Moraes, citando alguns julgados dos Tribunais, "a expressão residentes no Brasil deve ser interpretada no sentido de que a Carta Federal só pode assegurar a validade e gozo dos direitos fundamentais dentro do território brasileiro, não excluindo, pois, o estrangeiro em trânsito pelo território nacional, que possui igualmente acesso às ações , como o mandado de segurança e demais remédios constitucionais".

1.2. É de suma importância registrar, também, que o regime jurídico das liberdades públicas protege tanto as pessoas naturais, brasileiros ou estrangeiros no território nacional, como as pessoas jurídicas, pois têm, também, direito à existência, à segurança, à propriedade, à proteção tributária e aos remédios constitucionais.

1.3. Ao analisar os destinatários dos direitos individuais, os mestres Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins assim se posicionam: " A despeito da fórmula ampla que adotou, ainda assim cremos que ela não pode ser entendida na sua literalidade, sob pena de ficarmos em muitas hipóteses aquém do que pretendeu o constituinte. Senão vejamos: se por acaso um estrangeiro em trânsito pelo País, portanto não residente, fosse tolhido em sua liberdade de locomoção, chegar-se-ia ao ponto de denegar-lhe o habeas-corpus, sob o fundamento de que carece da residência no Brasil para dele se beneficiar? Por acaso ainda, recusar-se-ia a devida proteção à propriedade de um estrangeiro que porventura nem residisse no País? A nós sempre nos pareceu que o verdadeiro sentido da expressão "brasileiros e estrangeiros residentes no País " é deixar certo que esta proteção dada aos direitos individuais é inerente à ordem jurídica brasileira".

1.4. Prossegue, ainda, os insignes juristas asseverando: "Em outras palavras, é um rol de direitos que consagra a limitação da atuação estatal em face de todos aqueles que entrem em contato com esta mesma ordem jurídica. Já se foi o tempo em que o direito para os nacionais era um e para os estrangeiros outro, mesmo em matéria civil".

"Portanto, a proteção que é dada à vida, à liberdade, à segurança e a propriedade é extensiva a todos aqueles que estejam sujeitos à ordem jurídica brasileira. É impensável que uma pessoa qualquer possa ser ferida em um destes bens jurídicos tutelados sem que as leis brasileiras lhe dêem a devida proteção. Aliás, curiosamente, a cláusula sob comento vem embutida no próprio artigo que assegura a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza".

"É de pequeno alcance, a nosso ver, a discussão em torno do ponto de saber se estes direitos são deferidos às pessoas físicas, ou, também, às jurídicas. Mais uma vez, aqui, quer-nos parecer que o Texto disse menos do que pretendia. A tomá-lo na sua literalidade seria forçoso convir que ele só beneficiaria às pessoas físicas. Mas, novamente, estaríamos diante de uma interpretação absurda. Em muitas hipóteses a proteção última ao indivíduo só se dá por meio da proteção que se confere às próprias pessoa jurídicas. O direito de propriedade é um exemplo disto. Se expropriável uma pessoa jurídica, ela há de o ser mediante as mesmas garantias por que o são as pessoas físicas ".

1.5. Sem um aprofundamento maior acerca da classificação dos direitos fundamentais e ultrapassada a questão referente à abrangência dos destinatários da proteção (pessoas naturais e jurídicas), cumpre-nos registrar que a garantia contida no art. 5 º, XII, da Carta da República é classificada como direito-garantia, pois institui o poder de se exigir que não se façam determinadas coisas. É direito a um não fazer, salvo as exceções estabelecidas pela ordem constitucional e na forma prevista em lei.

1.6. Consigna, literalmente, o inciso XII, do art. 5º, da Carta Magna: "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução penal ".

1.7. Deflui-se da leitura do dispositivo suso transcrito que, a exceção diz respeito apenas à intercepção telefônica, porém, o Supremo Tribunal Federal, através da 1 ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 24 jun.1994, p. 16.650, assim se posicionou: " Ocorre, porém, que apesar de a exceção constitucional expressa referir-se somente à interceptação telefônica, entende-se que nenhuma liberdade individual é absoluta, sendo possível, respeitados certos parâmetros, a intercepção das correspondências e comunicações telegráficas e de dados sempre que as liberdades públicas estiverem sendo utilizadas como instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas".

1.8. Esta garantia individual contida na ordem constitucional vigente trouxe em seu contexto uma exceção ( possibilidade de intercepção telefônica), exigindo, contudo, três requisitos: a) ordem judicial; b) para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; c) nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer.

1.9. Como explica o jovem constitucionalista Alexandre de Moraes, em sua obra anteriormente referida, " Em relação ao último requisito ( nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer), a doutrina dividia-se sobre a recepção e a possibilidade de utilização do Código de Telecomunicações, enquanto não fosse editada lei regulamentando as interceptações telefônicas, tendo porém o Plenário do Supremo Tribunal Federal, decidindo a questão, afirmando a não recepção do art. 57, II, e, da Lei n º 4.117/62 (Código Brasileiro de Telecomunicações, vedando-se qualquer espécie de intercepção telefônica, até a edição da legislação exigida constitucionalmente, sob pena de decretar-se a ilicitude a prova por esse meio obtida".

1.10. Este entendimento foi mantido pelo Supremo Tribunal Federal até a edição da Lei n º 9.296, de 24.07.1996 - Intercepções Telefônicas, quando a hipótese foi regulamentada.

1.11. A propósito é de transcrever-se os Acórdãos do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria, antes da regulamentação legislativa, para um melhor entendimento da questão.

HC 72.588-PB, relatado pelo Ministro Maurício Corrêa, 12 jun.1996: "FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA" - Examinando novamente o problema da validade de provas cuja obtenção não teria sido possível sem o conhecimento de informações provenientes de escuta telefônica autorizada por juiz - prova que o STF considera ilícita, até que seja regulamentado o art. 5º, XII, da CF ("é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e comunicações telefônicas, salvo no último caso, por ordem judicia, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal")-, o Tribunal, por maioria de votos, aplicando a doutrina do "frutos da árvore envenenada", concedeu habeas corpus impetrado em favor do advogado acusado do crime de exploração de prestígio (CP, art. 357, parágrafo único), por haver solicitado a seu cliente (preso em penitenciária) determinada importância em dinheiro, a pretexto de entregá-la ao juiz de sua causa. Entendeu-se que o testemunho do cliente ao se chegara exclusivamente em razão de escuta -, confirmando a solicitação feita pelo advogado na conversa telefônica, estaria "contaminado" pela ilicitude da prova originária. Vencidos os Ministros Carlos Velloso, Octávio Galloti, Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves, que indeferiram o habeas corpus, ao fundamento de que somente a prova ilícita - no caso, a escuta - deveria ser desprezada. Precedentes citados HC 69912-RS (DJ de 26.11.93), HC 73351-SP (Pleno, 9.5.96; v. Informativo n º 30). HC 72.588-PB, Rel. Ministro Maurício Corrêa, 12.6.96 - INFORMATIVO STF - Brasília, 10 a 14 de junho de 1996 - n º 35.

HC 73351-SP - habeas corpus, Rel. Min. Ilmar Galvão, m.v., j. 9.5.96, INFORMATIVO STF n º 30 - EMENTA: habeas corpus. Acusação vazada em flagrante delito viabilizado exclusivamente por meio de operação de escuta telefônica mediante autorização judicial. Prova ilícita. Ausência de legislação regulamentadora. Art. 5 º , XII, da Constituição Federal. Fruits of the poisonus tree. O Supremo Tribunal Federal por maioria de votos, assentou entendimento no sentido de que sem a edição de lei definidora das hipóteses e da forma indicada no art. 5 º, inciso XII, da Constituição , não pode o juiz autorizar a interceptação telefônica para fins de investigação criminal. Assentou, ainda, que a ilicitude da interceptação telefônica - a falta de lei que, nos termos do referido dispositivo, venha a discipliná-la a viabilizá-la - contamina outros elementos probatórios eventualmente coligidos, oriundos direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta (IBCCRIM - Boletim - Jurisprudência - agosto de 1996).

1.13. Infere-se, portanto, que antes da edição da lei definidora ( Lei n º 9.296, de 24.7.1996) das hipóteses e da forma estabelecida para consecução da escuta telefônica, e para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, a prova coligida, mesmo com autorização judicial, era considerada ilícita pela Corte Suprema do País, conforme registra os julgados acima transcritos. E mais, as provas derivadas da escuta telefônica eram consideradas, também, ilícitas, por força da teoria dos frutos da árvore envenenada.

2 - A INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA COMO MEIO DE PROVA

2.2. Com a introdução no sistema jurídico brasileiro da Lei n º 9.296, de 24 de julho de 1996 passou-se, pois, a se permitir a interceptação das comunicações telefônicas, como meio de prova, a ser utilizado tanto na investigação criminal como na instrução processual penal.

2.3. A palavra interceptar significa interromper no seu curso. Isto consiste no acesso ao conteúdo do diálogo realizado através do sistema de telecomunicações, entre duas ou mais pessoas.

2.4. Regulamentado que foi o preceito constitucional que impõe como garantia constitucional, a inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, tornou-se possível o acesso, mediante segredo de justiça, ao conteúdo das conversações realizadas pela via telefônica, desde que tenha como finalidade instruir a peça preparatória da ação penal e a instrução processual penal.

2.5. Sem também aprofundar a questão sobre prova é necessária uma exposição rápida acerca deste instituto. O estudo da prova pressupõe o conhecimento da estrutura e da dinâmica do processo. Para melhor entender a matéria em estudo é de se trazer à colação os ensinamentos do jovem Promotor de Justiça do Estado de São Paulo Fernando Capez acerca do Processo, procedimento e relação jurídica processual, para posterior análise sobre a prova em si mesma, vejamos: " O processo, instrumento de atuação da função jurisdicional, pode ser encarado sob dois prismas distintos, mas intimamente conexos entre si: a) dos atos que representam sua forma extrínseca (objetivo); b) das relações que vinculam os sujeitos processuais (subjetivo)".

" Analisando-o sob o aspecto objetivo, isto é, dos atos, identificamos o seu primeiro elemento constitutivo: o procedimento, entendido como cadeia de atos e fatos coordenados, juridicamente relevantes, vinculados por uma finalidade comum, qual a de preparar o ato final, ou seja, o provimento jurisdicional, que, no processo de conhecimento é a sentença de mérito".

" Sob o aspecto subjetivo, surge o segundo elemento constitutivo do processo, que lhe dá vida e dinamismo: a relação jurídica processual".

" É possível caracterizar a relação jurídica processual como o nexo que une e disciplina a conduta dos sujeitos processuais em suas ligações recíprocas durante o desenrolar do procedimento. Tendo em vista que no arco do procedimento os sujeitos passam de situação em situação, de posição em posição, ativas e passivas, podemos dizer, ainda, que a relação jurídica processual apresenta-se como a sucessão de posições jurídicas ativas (poderes, faculdades e ônus) e passivas (deveres, sujeições e ônus) que se substituem pela ocorrência de atos e fatos procedimentais, porquanto de um ato nasce sempre uma posição jurídica, que, por sua vez, servirá de fundamento à prática de outro ato, que ensejará nova posição dos sujeitos processuais e, assim por diante, até o provimento final".

2.6. Resulta evidenciado que essa sucessão de atos e fatos procedimentais, no processo penal, tem por finalidade a realização da ordem jurídica através da apuração do crime e identificação de seu autor, pelo Estado-Juiz, pela sentença (julgamento).

2.7. Sucede, porém, que para julgar, é preciso, antes, provar, isto é, demonstrar os fatos articulados na peça acusatória. Prova, na clássica definição de Mittermayer , é o complexo dos motivos produtores da certeza. Prosseguindo, com o conceito de prova, torna-se imperativo o magistério de Sabatini para quem prova é o conjunto de fatos e circunstâncias sobre os quais o juiz funda sua convicção a respeito da existência do crime e que constitui objeto de sua indagine e decisão.

2.8. Lucchini, após ressaltar que o objeto do procedimento é a descoberta da verdade, observa que esta se torna relativa, porque depende de nossos conhecimentos e percepções. Seu equivalente nei rapporti soggetivi dell ‘ uomo é a certeza, constituída da convicção, ou seja, do reconhecimento subjetivo da verdade.

2.9. A prova pode ser vista sob dois aspectos :

2.10. Para melhor explicar estes aspectos é de se trazer à baila os ensinamentos de Paulo Heber de Morais e João Batista Lopes " Em verdade, os fatos só podem ser considerados provados no momento em que sobre eles o juiz forma a sua convicção (convencimento)".

Ao magistrado só é lícito, por outro lado, formar o seu convencimento com base nas provas produzidas nos autos ( Quod non este in actis non est in mundo.).

Permitir ao juiz afastar-se dos elementos constantes do processo - não se perca de vista que o processo é o instrumento da realização da ordem jurídica - seria expor as partes à insegurança e, até mesmo, ao arbítrio.

O princípio do livre convencimento (livre convencimento motivado, no dizer de Arruda Alvim) não libera o juiz do exame das provas dos autos e da obrigação de justificar o seu convencimento.

2.11. Dispõem as partes dos mais diversos meios de prova para demonstração dos fatos alegados no processo, dentre eles a interceptação de comunicações telefônicas, para fins de instruir as preliminares investigações e a instrução processual penal.

2.12. Infere-se, portanto, na norma constitucional (art. 5º , XII, da CR), que a interceptação continua sendo vedada entre particulares, sejam pessoas físicas ou jurídicas, independentemente da finalidade da gravação, ficando tão-somente permitida para ser utilizada como prova em investigação criminal e em instrução criminal.

2.13. Esta limitação de finalidade dá ensejo a um breve comentário acerca da utilização da prova obtida mediante interceptação telefônica no juízo cível, desde que a quaestio juris tenha por objeto bem de interesse público.

2.14. A priori, impõe-se algumas considerações sobre a prova emprestada. A doutrina tem recebida com cautela e restrições a chamada prova emprestada, sob o fundamento de que o Juiz somente poderá se basear nas provas produzidas na relação processual por este presidida. Mas, diante da ausência do princípio da identidade física do Juiz, não se pode de plano desprezar a prova emprestada.

2.15. Antes de enfrentar a questão de forma direta, cumpre-nos trazer à colação os ensinamentos de Mittermaier sobre as relações e analogias entre a prova em matéria criminal e em matéria civil. Expõe o citado mestre " Sem dúvida seria um erro recusar certos pontos de contato: 1º, no cível como no criminal um processo é sempre um processo, e um, como noutro, devem aparecer alguns caracteres genéricos e comuns; 2º, em ambos o fim que se procura atingir é igualmente a manifestação da verdade. Da primeira proposição seguem-se diversas conseqüências; e notaremos já que existem certos princípios comuns, que decorrem da mesma natureza do processo em geral; há sempre necessidade de duas partes contrárias, que se opõem, estabelecendo conclusões respectivamente adversas, e é da verdade de sua afirmação que depende a aceitação dessas conclusões. Entre estas conseqüências comuns devemos especialmente mencionar a regra fundamental que incumbe a prova dos fatos aqueles que os alega, (quer seja o autor na instância civil, quer o magistrado que tem a missão da acusação criminal em nome da sociedade), e que manda julgar em favor do réu, desde que tal prova se não deu ".

2.16. Diante do texto acima transcrito, cumpre-nos uma pequena digressão, a fim de registrar que na ordem constitucional vigente incumbe ao Ministério Público, na condição de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei. Evidente que quando da edição da obra acima referida, a estrutura organizacional do Estado era outra, esta pois a razão de se atribuir ao magistrado a missão de acusar.

2.18. Quer-nos parecer, que se a prova produzida na relação processual criminal for transportada para relação processual cível e harmonizar-se com a prova nela produzida, não há razão para ser desprezada.

2.19. Para melhor vislumbrar a possibilidade de utilização da prova obtida através da interceptação de comunicação telefônica, no processo não-penal, é de consignar-se a existência da Lei n º 8.429/92 ( Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício do mandato, cargo, emprego ou função administrativa pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências). Como se sabe, o legislador infra constitucional ao editar a lei acima referida, instituiu três modalidades de atos de improbidade administrativa; são eles: a) os que importam enriquecimento ilícito (art. 9º); b) os que causam prejuízo ao erário ( art. 10); e c) os que atentam contra os princípios da administração pública.

2.20. Não necessariamente os atos de improbidade administrativa, trazem, quando de sua realização, a concreção de condutas delitivas, mas a prática das modalidades descritas no art. 9 º, da lei suso referida adapta-se a figuras descritas na lei penal, mormente as definidas no capítulo que trata dos crimes praticados por funcionários públicos contra a administração pública.

2.21. Imaginemos, pois, a produção de prova elucidando a prática do crime de concussão, obtida, exclusivamente, através da interceptação de comunicação telefônica. Decerto que esta prova ensejará a condenação do autor do delito na relação processual, porquanto legitimamente produzida e utilizada para o fim previsto constitucionalmente. Mas, seria correto afirmar pela impossibilidade dessa mesma prova na ação civil destinada ao ressarcimento do dano causado ao erário, com base na lei n º 8.429/92, por se tratar de relação processual não-penal. Acreditamos que não; primeiro por entender que as garantias de ordem pública devem se sobrepor às garantias de ordem individual, conforme já tem se posicionado o Supremo Tribunal Federal, e por outro lado, não existe hipótese proibitiva dentro do sistema jurídico vigente de utilização da prova emprestada, conforme ficou amplamente demonstrado nas deduções anteriores.

2.22. Registre-se, por seu turno, que os atos de improbidade administrativa ofendem diretamente o patrimônio público, bem que se destina a todo o elemento humano da sociedade política organizada. Assim, preservar a inviolabilidade da intimidade do cidadão em detrimento do interesse coletivo, por ausência de finalidade específica de utilização da prova obtida mediante interceptação de comunicação telefônica, na relação processual civil, é ferir o princípio da proporcionalidade implícito nos sistemas constitucionais modernos.

2.23. Sem também aprofundar o tema, a Profª. Ada Pellegrini Grinover, em Conferência proferida por ocasião da posse na cadeira n º 5 da Academia Brasileira de Letras Jurídicas (Rio de Janeiro, 26.11.1996) assim se posicionou sobre o tema, verbis: " Suponha-se, então, que, num processo civil, alguém invoque prova produzida em processo penal anterior, entre as mesma partes (v.g., vítima e acusado, ou Ministério Público e acusado) resultado de interceptação telefônica lícita. Será o caso, por exemplo, de processo-crime em que se apurem fatos relevantes para a dedução da pretensão relativa às sanções aplicáveis aos agentes públicos nos caso de improbidade administrativa ( Lei n 8.429, de 02.06.1992)".

" Poderá, em caso como esse, ter eficácia a prova emprestada, embora inadmissível sua obtenção no processo não-penal ?"

" Penso que sim. E concordo, aqui também, com a posição sugerida por Barbosa Moreira. O valor constitucionalmente protegido pela vedação das provas ilícitas, no caso das interceptações telefônicas, é a intimidade. Rompida esta, legitimamente, em face do permissivo constitucional, nada mais resta a preservar. Seria uma demasia negar-se a recepção do resultado da prova assim obtida, sob a alegação de que estaria sendo obliquamente vulnerado o comando constitucional. Ainda aqui, mais uma vez, deve prevalecer a lógica do razoável".

2.24. Acreditamos que com esta breve exposição realizada com o auxílio dos mais lúcidos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais é de concluir-se pela utilização da prova obtida através da interceptação de comunicação no processo não-penal. Com esta conclusão, e considerando a necessidade de se conhecer os termos da Lei n º 9.296/96 que regulamentou o inciso XII, do art. 5 º, da Carta da República, passamos à análise dos artigos da referida lei.

3 - COMENTÁRIOS AOS DISPOSITIVOS DA LEI N º 9.296/96

3.1. O art. 1º ,da Lei em comento, estabelece que a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, dependerá de ordem judicial, devendo, inclusive, ser processada sob o segredo de justiça. Isto significa, que a melhor terminologia, quando do acesso às informações obtidas pela interceptação de comunicações telefônicas, é a de transferência do sigilo para as autoridades com atribuições para elucidação dos fatos criminosos, não devendo se cogitar em quebra do sigilo, pois o sigilo permanece mantido, apenas ampliado o número de pessoas que passam efetivamente a ter conhecimento de seu conteúdo, porquanto existem aquelas pessoas que tem conhecimento em função de ofício relacionado com as comunicações telefônicas.

3.2. Neste mesmo dispositivo, o legislador, com estreita observância dos limites estabelecidos no ordenamento constitucional, consignou que a finalidade do acesso ao conteúdo das informações objeto das comunicações telefônicas é para a produção de prova em investigação criminal e em instrução processual penal, porém é de reconhecer-se a possibilidade de utilização desta em sede de Ação Civil de Responsabilidade por atos de improbidade administrativa, sob a ótica de prova emprestada.

3.3. Por força dos constantes avanços tecnológicos o legislador, no parágrafo único, do art. 1º, tratou de consignar que havendo o fluxo de comunicações telefônicas, através dos sistemas de informática e telemática, também se admite sua interceptação, para os fins definidos no caput do mencionado artigo.

3,4. Em seguida, o legislador tratou de introduzir no diploma legal em apreço, precisamente em seu art. 2º, as hipóteses de inadmissibilidade da medida cautelar excepcional (interceptação de comunicações telefônicas), traduzindo-as da seguinte forma: a) não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; b) a prova puder ser feita por outros meios disponíveis: c) o fato investigado constituir infração penal punida no máximo , com pena detenção.

3.5. A primeira hipótese de inadmissibilidade faz surgir a primeira condição para sua admissão, qual seja, a demonstração de indícios suficientes da autoria delitiva ou de ter dela participado. Esta condicionante tem por finalidade evitar o abuso das autoridades legitimadas na adoção da providência excepcional, porquanto está a exigir, no mínimo, elementos primeiros que possam ensejar a indicação da autoria ou participação.

3.6. Com acerto agiu o legislador, pois limitou a interceptação de comunicações telefônicas a figura do autor ou do partícipe, evitando com isto o erro contido no art. 1º, inciso I, da Lei n.º 7.960, de 21 de dezembro de 1989, que chega a permitir, por incrível que pareça, a prisão temporária de uma testemunha, acaso utilize-se o método de interpretação literal, com desprezo do método sistemático.

3.7. A segunda hipótese de inadmissibilidade consigna a execepcionalidade do meio para obtenção de prova, pois sendo possível a produção de prova, através dos meios tradicionalmente utilizados, que elucidem autoria e materialidade da conduta delitiva, não é de se permitir a transferência do sigilo das comunicações telefônicas. Depreende-se, portanto, que o pedido deverá ser formulado com a demonstração da necessidade de utilização do meio excepcional para obtenção de prova na investigação criminal ou na instrução processual penal.

3.8. Finalizando as hipóteses de inadmissibilidade, o legislador proibiu a concessão da medida quando o fato investigado constituir infração penal punida no máximo, com pena de detenção. Com esta colocação não se permite a concessão da medida, também, quando o fato delitivo for apenado com prisão simples e multa, ficando a medida condicionada à existência de fato criminoso punido com pena de reclusão.

3.9. Bem se vê, que a medida excepcional traz como parâmetro para sua concessão o grau de lesividade da conduta delitiva, pois na verdade o direito é de se assegurar sempre a manutenção do sigilo das comunicações telefônicas, não podendo este direito ser excepcionado quando a ação delitiva possuir um grau mínimo ou médio de lesividade.

3.10. Exige o parágrafo único do artigo sub examine, que o pedido descreva com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada. A ressalva aqui instituída deve ser analisada, sem prejuízo, do atendimento no mínimo da condição de admissibilidade implícita contida no inciso I, do mesmo artigo, que está a exigir indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal.

3.11. Os legitimados e a oportunidade de concessão da medida foram definidos no art. 3º da Lei n.º 9.296/96. Conferiu o legislador legitimidade à autoridade judiciária, para agir de ofício, levando em consideração, sem dúvida nenhuma, o poder de produção de prova de que é detentor em matéria processual penal, sempre na busca da verdade real, bem assim a autoridade policial, na fase pré-processual, e ao Ministério Público na investigação criminal e na instrução processual penal.

3.12. Resulta, de logo evidenciado, a impossibilidade de formulação da medida cautelar de interceptação de comunicações telefônicas pelo querelante e pelo assistente. Assim, na ação de iniciativa privada, surgindo no curso na relação processual essa necessidade, somente o Ministério Público, na condição de custos legis poderá peticionar, salvo, evidentemente, a determinação de ofício pela autoridade judiciária.

3.13. Quanto ao assistente, sujeito secundário na ação penal pública, vedou o legislador a formulação do pedido. Com isto não pode invocar o assistente as disposições do art. 271, primeira parte, - "Ao assistente será permitido propor meios de prova", - como fundamento para interposição do pedido.

3.14. Dessume-se da leitura do art. 4º e do § 1º da Lei em análise, que o pedido deverá ser sempre formulado por escrito, com o detalhamento das condições exigidas para sua concessão, inclusive com a indicação dos meios que serão empregados na interceptação das comunicações telefônicas, porém poderá o mesmo ser apresentado verbalmente, mas a sua concessão será condicionada a redução a termo. Isto significa que a autoridade ao decidir deverá analisar a pretensão formulada, devendo fundamentar a sua concessão, consoante exigência contida na primeira parte do art. 5º.

3.15. Dada a finalidade e urgência da medida, a lei fixou o prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas para o Juiz decidir sobre o pedido.

3.16. Dispõe o artigo 5º que a decisão deverá ser fundamentada, sob pena de nulidade, e que o prazo de realização da diligência para colheita da prova não excederá a 15 (quinze) dias, devendo a autoridade judiciária indicar a forma de execução. Admitiu, ainda, a prorrogação por igual prazo, desde que demonstrada a indispensabilidade do meio de prova; isto significa que a parte requerente deverá expor à autoridade judiciária a necessidade de manutenção da diligência, para a produção da prova, a fim de que esta conceda a renovação por igual prazo e determine o prosseguimento desta.

3.17. Após a concessão do pedido, quando for este formulado pela autoridade policial, esta conduzirá os procedimentos de interceptação, dando a devida ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização. Esta disposição prevista no art. 6º dispensa a prévia ouvida o Ministério Público sobre o pedido, porém obriga a autoridade policial a comunicar a concessão da medida, bem assim faculta ao Órgão Ministerial o acompanhamento das diligências.

3.18. Os parágrafos primeiro, segundo e terceiro, bem assim o art. 7º da lei em apreço definiram o procedimento a ser adotado na execução da diligência. Havendo a gravação da comunicação interceptada será esta transcrita, isto é, a autoridade providenciará a conversão dos dados constantes da fita para o uso da linguagem como comunicação escrita, por meio de letras, sem alterar seu conteúdo original.

3.19. Assim, cumprida a diligência com a produção da prova necessária à investigação criminal ou à instrução processual penal, a autoridade policial encaminhará o resultado da intercepção ao Juiz, acompanhado de auto circunstanciado, que deverá conter o resumo das operações realizadas. É de se destacar, por força das prescrições do art. 9º, que além da transcrição, a autoridade policial deverá remeter a fita com o conteúdo da gravação para a autoridade judiciária, pois poderá conter dados que não interessem à prova, o que ensejará o incidente de inutilização, devendo a autoridade judiciária decidir, mediante requerimento do Ministério Público ou da parte interessada.

3.20. Recebidos os autos da interceptação, com relatório circunstanciado da autoridade, o Juiz determinará o apensamento aos autos do inquérito ou do processo criminal, dependendo da fase que foi realizada a diligência, com a devida ciência ao Ministério Público, preservando-se, sempre, o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas, consoante prescrevem o § 3º e art. 8º, da Lei n.º 9.296/96. A inobservância desse segredo de justiça constitui o tipo penal previsto no art. 10, da Lei em exame, cuja pena é de reclusão de dois a quatro anos e multa.

3.21. Indispensável a providência referida no art. 7º, que possibilita à autoridade policial a requisição de serviços e técnicos especializados às concessionárias de serviço público, dada a especialidade necessária para execução da diligência. Desnecessária a referência ao Ministério Público, quando for este o requerente da medida, pois o Poder requisitório já se encontra amplamente definido no art. 26, I, "a", da Lei n.º 8.625/93, que confere o poder de requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

3.22. Como se vê a apensação ocorrerá por determinação judicial ao inquérito ou ao processo, após o relatório da autoridade incumbida da realização, contudo presentes as hipóteses definidas no art. 10, § 1º, 407, 502 ou 538 do Código de Processo Penal admitiu o art. 9º da Lei em apreço a apensação imediata, antes mesmo da apresentação do relatório.

3.23. Esta permissibilidade ocorre no primeiro momento (art. 10, § 1º, CPP) por força da finalização das atividades da autoridade policial que presidiu o inquérito, devendo este enviar os autos da investigação preliminar ao juiz competente.

3.24. Na segunda hipótese prevista (art. 407, CPP) os autos do processo já se encontram conclusos a autoridade judiciária para prolação da decisão que encerra a primeira fase de julgamento dos crimes dolosos contra a vida, e, supondo que a diligência tenha resultado em elemento de prova, nada mais lógico que sua apensação ocorra de imediato.

3.25. A terceira hipótese (art. 502,CPP) representa a fase de julgamento dos crimes de competência do juízo singular, e finalmente, a quarta hipótese representa o momento do saneamento do processo sumário, a fim de permitir a feitura da audiência de instrução e julgamento para um dos 08 (oito) dias subsequentes, cientificados o Ministério Público, o réu e seu defensor.

3.26. Definitivamente a Lei n.º 9.296/96 instituiu a legitimidade da prova colhida por meio de intercepção de comunicações telefônicas, desde que observados todos os atos procedimentais elencados em seus 09 (nove) artigos, mas este instrumento de regulamentação do art. 5º, XII, da Carta da República deverá ser utilizado de forma excepcional, razão pela qual compete ao Ministério Público, em especial, zelar pelo não uso abusivo deste meio, dada a importância do sigilo das comunicações telefônicas, pois, sem dúvida alguma, a transferência dessas informações representa uma invasão à própria intimidade do indivíduo, ressalvando, sempre, a preservação das garantias coletivas, as quais devem sempre se sobrepor às garantias individuais.

3.27. Concluindo, de suma importância a introdução da presente lei no sistema jurídico brasileiro, porém forçoso reconhecer a necessidade de melhor interpretação pela doutrina e de maior efetividade na aplicação por parte da jurisprudência, a fim de tornar harmônica a convivência entre as garantias individuais e o permanente combate ao crescente avanço da criminalidade. Diante das constantes denúncias acerca do crime organizado em nosso Estado, envolvendo os mais diversos segmentos da sociedade (membros do legislativo, do judiciário e do executivo) torna-se imperativo a utilização desse meio de prova para aplicação das sanções e reprimendas devidas. Que este exame acerca desse elemento de prova possa ensejar novos estudos através dos operadores do direito de nosso Estado.

* É Procurador-Geral de Justiça do Estado de Alagoas

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